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Plataforma CACI apresenta panorama do genocídio dos indígenas no Brasil

A Plataforma de Cartografia dos Ataques Contra Indígena (CACI) é um recente levantamento de ataques contra povos indígenas no território dominado pelo Estado Brasileiro. Foi ao ar em junho de 2016 e mapeia parte da violência civilizatória contra povos tradicionais entre os anos de 1985 e 2015.

Nela já constam cerca de 750 assassinatos entre 2003 e 2015 No Mato Grosso do Sul, conhecido por seu contexto de conflitos entre latifundiários e comunidades tradicionais lutando por terra e autonomia – encontra-se em pequenas porções de terra, a segunda maior população indígena no território brasileiro.

Segundo a plataforma CACI é também no Mato Grosso do Sul que estão concentradas mais da metade dos ataques, 400 dos quase 750 assassinatos de indígenas entre 2003 e 2015. A Plataforma de Cartografia de Ataques Contra Indígenas pode ser acessada pelo link.

http://caci.rosaluxspba.org/

Documentos da Cruz Vermelha revelam massacre de indígenas na ditadura

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Trabalhos forçados, miséria e doenças levaram povos “à beira do extermínio” na década de 1970, registram informes confidenciais do Comitê Internacional da entidade

Num estado de saúde deplorável, aniquilados por doenças, uma miséria profunda e trabalhando como escravos para fazendeiros, povos indígenas inteiros estiveram próximos de desaparecer no final dos anos 60 e início da década de 70.

Isso é o que revelam informes confidenciais preparados pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha e que estiveram guardados por quase meio século de forma sigilosa em Genebra. Alguns povos passaram a praticar abortos diante da constatação de famílias de que não teriam como garantir a sobrevivência da nova geração.

A entidade, depois de uma intensa negociação com o governo militar brasileiro, foi a primeira organização internacional a sair ao resgate dos índios da Amazônia, num momento que jornais e especialistas estrangeiros apontavam para um “genocídio” na floresta brasileira.

A reportagem teve acesso a centenas de páginas de documentos dos arquivos do Comitê Internacional da Cruz Vermelha que, de forma inédita, apresentam detalhes do regime militar brasileiro entre 1965 e 1975. Os arquivos estavam fechados até este ano.

O que os documentos revelam é, acima de tudo, a miséria de um grupo cada vez mais pressionado por interesses econômicos e sem contar com a assistência da Funai, considerada pelo CICV como “incapaz” de lidar com a crise.

Os alertas para a entidade começaram a chegar na primeira metade ainda dos anos 60, com especialistas europeus denunciando a crise. Os capítulos nacionais da Cruz Vermelha na Alemanha e nos países nórdicos também pressionaram e indicaram que estavam dispostos a financiar uma ação na Amazônia. Mas o CICV levaria anos para agir. Primeiro, por alegar que jamais tomaram uma iniciativa similar. Quando optou por se lançar na operação, já em 1969, teve então de superar a resistência do governo brasileiro.

Na época, o então ministro do Interior, José Costa Cavalcanti, aceitou a missão, com o compromisso de que fosse puramente humanitária e que resultasse em uma ajuda real. Ele, porém, negava qualquer ato deliberado das autoridades em promover um massacre, tese divulgada naquele momento pela Europa.

Foi finalmente em 1970 que uma missão foi enviada ao Brasil, liderada pelos delegados Bo Akerren, Sjouke Bakker e Rolf Habersang. Em pouco mais de três meses, eles visitaram 20 povos e 30 vilarejos, tendo acesso ao que acreditam ser um terço da população indígena da Amazônia Legal naquele momento, avaliada em cerca de 70 mil.

Os delegados, em suas conclusões, disseram claramente que “não entrariam na questão se há ou não um genocídio”. Mas foram taxativos: se nada for feito de forma rápida, “não haverá mais o problema indígena para resolver”.

Para chegar a essa constatação, o grupo percorreu uma trajetória que se confundia com o percurso do abandono de populações inteiras pelas autoridades.

No dia 17 de maio de 1970, o diário da viagem dos delegados conta como na aldeia Santa Isabel, com 250 índios Carajás, a malária tracoma e gastroenterite dominavam o local. Mas o destaque foi o “baixo padrão de higiene, agravado pela presença de muitos cachorros que poderiam ser fonte de tuberculose”. No dia seguinte, a duas horas dali em barco, uma outra aldeia foi descrita como tendo um “padrão muito baixo de higiene, pessoas e local sujos” e uma epidemia de influenza, pneumonia combinada com malária e tuberculose. “Essa aldeia Carajás deu a impressão de estar totalmente negligenciada e apática”.

No dia 27, a visita a uma aldeia Kanayurá encontrou uma população “muito pobre”, com a presença de bronquite, casas “muito dilapidadas” e mulheres e crianças “magras e fracas”.

Alguns dias depois, entre os Bororo no Mato Grosso, a delegação deparou com uma situação de “ extrema pobreza”, anemia severa e com 15% da população sofrendo com tuberculose. “A tribo está rapidamente em declínio em números por conta das doenças, alimentação inadequada e completa ausência de ajuda médica”, alertou. “A falta de ajuda vai logo levar à extinção dos Bororos”, indicou a delegação.

No dia 1 de junho, numa visita a um ambulatória da Funai nas proximidades de Cuiabá, a delegação foi informada que o estado do Maro Grosso tinha apenas 50 camas para tratar tuberculose e com longas filas de espera. “As chances dos índios serem internados eram praticamente zero”, constatou.

Abortos frequentes

Uma visita ao Seringal do Faustino, 60 km de Vilhena na direção de Porto Velho, também deu a dimensão da crise no dia 5 de junho de 1970. Numa aldeia Nambiquara, entre doenças e desnutrição, os índios apenas comiam “ocasionalmente algum arroz de um fazendeiro que queria que eles trabalhassem”.

“Todos são obrigados a trabalhar para o fazendeiro, uma espécie de chefe local que os mantinha mais ou menos em um estado de completa dependência, dando algum arroz de tempos em tempos e ocasionalmente alguma roupa”, disse. “As mulheres não querem engravidar, pois temem perder os filhos diante do trabalho duro que tem de fazer e do temor de não poder cuidar”, apontou. O resultado eram abortos frequentes e, portanto, um estagnação na população da aldeia.

Os índios Nambiquara pelas lentes do antropólogo Lévi-Strauss

Os índios Nambiquara pelas lentes do antropólogo Lévi-Strauss

O risco de extinção ainda foi apontado na aldeia de Capitão Pedro, 50 quilômetros de Vilhena na direção de Cuiabá. Segundo o informe, um grupo de Nambiquaras estava em uma “situação verdadeiramente desesperadora e se ajuda não for dada, a aldeia provavelmente desaparecerá completamente”. Não distante dali, a delegação constatou que sete pessoas de um grupo de cem índios tinham morrido de sarampo em três semanas. Outros 20 estavam doentes. Em Feijoal, duas horas de barco de Belém, os Ticuna estavam em uma situação “realmente miserável”.

No posto da Funai de Mãe Maria, uma hora de Marabá, um outro grupo de 46 índios tinha apenas farinha para comer. “Esses índios estavam no estado mais deplorável que encontramos em termos de saúde”, disse o informe. “Homens e mulheres estavam muito doentes”, contou, apontando que eles haviam sido transferidos de suas terras diante da construção da rodovia Belém-Brasília.

Em agosto, um grupo Kayapó Xikrin, uma hora de Marabá, constatou que, alguns anos antes, uma epidemia de pólio matou um terço da aldeia, com cerca de 50 vítimas.

Risco do contato

Diante das constatações e das visitas, os delegados do CICV chegaram à conclusão de que os povos mais isolados são aqueles que estavam em melhor situação em termos de saúde. “Índios isolados em seus habitats podem ser considerados como estando melhor adaptados e em equilíbrio com o meio ambiente”, indicou a missão.

Teria sido o contato com a “civilização”, na maioria dos casos, que teria levado grupos inteiros a viver uma situação de risco. Como recomendação, o CICV sugere que os novos contatos fossem feitos de forma “cuidadosa”. “Eles (índios) são tirados do equilíbrio em contato com outras civilizações, como a nossa”, explicaram. Esse contato poderia levar a “novas infecções, novos hábitos de alimentação, estrutura social, novos sistemas de valores”.

“Quanto mais rápido e sem controle (ocorrer) o contato, maior o risco de os índios sucumbirem, não apenas como membros de uma entidade tribal, mas também como seres humanos”, constatou. Nos meses que se seguiram à missão, a entidade montou um amplo plano de entrega de remédios e alimentos na região, num esforço para evitar que a população indígena fosse dizimada.

Mas ela também constatou que não havia dúvidas de que, nos anos seguintes, a sociedade brasileira iria “forçar seu caminho a novas áreas e esses índios vão estar ainda mais pressionados”. Quanto à FUNAI, seus recursos seriam “insuficientes” para lidar com a crise.

Uma avaliação que, 46 anos depois, provaria certeira ao ponto de uma recente relatora da ONU para o direito dos povos indígenas, Victoria Tauli Corpuz, adotar o mesmo tom em relação à pressão que grandes obras de infraestrutura podem gerar na demarcação de terras. “Informações apontam para uma regressão preocupante na proteção dos índios”, afirmou.  Ela ainda completou sua avaliação com uma constatação: “o País tem uma dívida histórica com os povos indígenas, que sofreram a marginalização desde a formação do Estado”.

Dívida essa que continua sem ser quitada.

 

Fonte: http://apublica.org/2016/10/documentos-da-cruz-vermelha-revelam-massacre-de-indigenas-na-ditadura/

General na Funai e a epidemia-genocida-xawara

Por Daniel Pierri

A indicação de Peternelli para a Funai é o coroamento de uma estratégia de perseguição neobandeirante

Michel Temer não gosta de ver o impeachment associado à palavra golpe, e muito menos ao golpe militar. Porém, constrói nos bastidores a nomeação de um General reformado, Sebastião Peternelli, para a presidência da Funai. Peternelli é indicação de André Moura, PSC, líder do Governo na Câmara e de Romero Jucá, flagrado por grampos como articulador de operação para barrar a Lava Jato.

Peternelli foi derrotado como candidato a deputado federal nas últimas eleições. Em seu twitter, apareceu um post defendendo a intervenção militar para derrubada de Dilma. Em seguida, ele alegou que alguém havia invadido sua conta e postado indevidamente, e que ele era a favor da “legalidade”. Em seu Facebook, porém, exalta a ditadura militar, e a perseguição à “comunistas”.

O general exerceu a função de secretário-executivo do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), nomeado por José Sarney em 2012, quando esse ocupava a função de Presidente da República em exercício, durante uma viagem de Dilma Rousseff e  Michel Temer, ainda no primeiro mandato. O pesquisador Jorge Zaverucha, em seu artigo publicado no livro O que Resta da Ditadura, esclarece que o Brasil era até recentemente o único país latino-americano que havia conservado a subordinação de seu órgão de inteligência aos militares; no caso a Agência Brasileira de Inteligência – ABIN, criada no Governo FHC –, ao próprio GSI, órgão controlado por ministros militares. Em seu segundo mandato, Dilma havia finalmente retirado o status de ministério do GSI, passando a ABIN para a Secretaria de Governo. Temer imediatamente revogou o ato, devolvendo o controle da ABIN aos militares.

O relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), no capítulo que trata da temática indígena, revelou que os órgãos de inteligência do Governo Militar perseguiam o movimento indígena então nascente, e também grampeavam e monitoravam seus aliados, seja da sociedade civil, seja dentro da própria Funai. Após o AI-5, foi criada na Funai uma Assessoria de Segurança da Informação (ASI), ligada diretamente à Divisão de Segurança da Informação (DSI) do Ministério do Interior, a ABIN da época. O acervo do ASI-Funai é farto em transcrições de grampos de servidores da Funai, de lideranças indígenas, de organizações indigenistas, e até de bispos da CNBB. Está tudo documentado, quem defendia demarcação de terras, índio ou não índio, estava monitorado a cada passo.

Hoje, a mesma bancada ruralista, que participa do lobby pró-Peternelli, controla uma CPI da Funai e do Incra na Câmara, instalada para perseguir novamente os índios e seus apoiadores, e abrir espaço para uma série de retrocessos na política indigenista, como a famigerada PEC 215, em relação à qual o general já se mostrou favorável. A nomeação de um quadro do GSI para presidência da Funai seria o coroamento dessa estratégia de perseguição neobandeirante, liderada pela bancada BBB – do Boi, Bala e Bíblia.

O relatório da CNV também revelou que Romero Jucá, padrinho inconfesso de Peternelli, foi responsável direto pela morte de centenas de Yanomami, ao capitanear a invasão de garimpeiros nesta terra indígena enquanto era presidente da Funai, e ao mesmo tempo expulsar as equipes de saúde da área, fazendo invadir as epidemias junto com o garimpo. Conforme documento divulgado pela CNV,  Jarbas Passarinho (1920-2016), então ministro da Justiça, confessou em 1993 a sua responsabilidade, a do Estado, e de Romero Jucá no genocídio Yanomami. À época, Sarney era Presidente da República e o general Peternelli era membro da sua segurança pessoal. Jucá até hoje continua exercendo sua influência na política local em Roraima, por meio de indicações e conchavos, que ele tenta fazer estenderem-se novamente à Presidência da Funai, que já ocupou.

Davi Kopenawa, líder Yanomami, testemunha do genocídio promovido com apoio de Jucá, recentemente publicou uma monumental obra auto-biográfica, A Queda do Céu, que relata os sucessivos massacres que os Yanomami sofreram durante a ditadura militar, e durante a gestão Jucá-Sarney. Os Yanomami chamam de xawara as epidemias associadas às mercadorias e à ganância dos brancos e seus chefes, cujo pensamento Kopenawa reproduz em seu livro: “Somos poderosos. Somos donos de toda a floresta. Que morram seus habitantes. Estão morando nela à toa, num solo que nos pertence”.

Foram pelo menos 8.350 indígenas mortos entre 1946 e 1988, segundo a CNV, provavelmente muito mais. As palavras que Kopenawa atribui aos chefes brancos são repetidas quase que literalmente da boca de parlamentares como Luiz Carlos Heinze, que diz que os índios são tudo que não presta, de Alceu Moreira e Jair Bolsonaro, que convocam os fazendeiros a se armarem contra os índios. São eles que incitam o ódio que culminou no assassinato recente do kaiowa-guarani Cloudione Rodrigues Souza, são eles que querem colocar Peternelli na Funai para voltar ao tempo dos militares.

Quando se diz que é golpe, não são todos que se dão conta de que para as populações mais vulneráveis o que se passa hoje com o ilegítimo Governo Temer é sim comparável ao que se passou durante a ditadura. Diante de tantos ataques, o que os povos indígenas precisavam era o fortalecimento institucional da Funai, voltado para a efetivação dos direitos sedimentados na Constituição Federal, especialmente a demarcação e proteção de suas terras. A indicação de Peternelli, entretanto, é parte de um projeto de restrição brutal dos direitos indígenas, intensificado no Governo golpista, que trabalha para um desmonte da Funai, com cortes substanciais de estrutura e orçamento pelo Ministério da Justiça, e sinalizações de recuo em demarcações de terra já publicadas.

Como sempre fizerem, porém, os povos indígenas vão resistir, pois retroceder nos direitos conquistados em 1988 significa o aprisionamento no tempo do genocídio que nunca parou, no tempo da xawara, a epidemia mortal das mercadorias e da ganância dos brancos.

Fonte: El País

A última família dos índios Juma

A etnia que já teve 15 mil integrantes hoje se resume a Aruká e suas três filhas: a família final

De semblante fechado, respostas curtas e simples, pobres de detalhes, mas extremamente ricas em sentimentos, Aruká reflete sobre o que poderia ter feito para não estar na situação em que se encontra hoje. “Meu pensamento é que o Juma aumentasse mais. Como que não tem mais Juma?”, questiona.

Aruká é o último homem do povo Juma. No século 18 eram cerca de 15 mil índios desta etnia, mas hoje só restaram o senhor de 82 anos e suas filhas Maitá, 31 anos, Borehá, 35 anos, e Mandeí, a mais nova, hoje com 28 anos. Como são patrilinear, ou seja, seguem a linhagem paterna, e como não existem mais homens, o futuro dos Juma já está condenado. Esta é a família final.

Os Juma não têm pajé, mas têm cacique – algo raro, um mulher: Mandeí. Assim como as irmãs, é uma pessoa simpática mas de postura firme. Em 2014 ela estava caçando na floresta e foi picada no pé por uma cobra jararaca, cujo veneno pode ser fatal. A cacique aguentou e só foi atendida dois dias depois, sem necroses ou perda de membros. Mandeí é, sem dúvidas, uma mulher forte. Pela organização e rotina da aldeia é claro notar que são as três Juma que tomam a frente e comandam o lugar – afinal, a terra é delas.

A história segue o mesmo triste roteiro de outros povos indígenas do Brasil. Inicialmente dizimados pelos portugueses, os Juma foram arrasados pelas doenças trazidas pelo homem branco e em seguida por seringueiros, garimpeiros e ladrões de terra. Foi um massacre constante, com relatos de chacinas, mas nenhuma condenação. No final da década de 70, um grupo invadiu a aldeia para roubar e matou mais de 60 índios. O caso apareceu no jornal local, mas não apareceram culpados. Ser indígena no Brasil é como ser jovem, negro e favelado, mas com ainda menos programas sociais e menor visibilidade da imprensa ou de organizações de direitos humanos.

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A cacique Mandeí. Crédito: Gabriel Uchida

Não bastasse todo o sofrimento histórico, em 1998 os poucos Juma restantes foram transferidos pela Funai de sua terra para uma aldeia de outra etnia, a Jamari dos Uru-eu-wau-wau – apesar de a Constituição Brasileira proibir a remoção de indígenas de sua área original. Segundo a Funai, eles estavam à mercê de invasores e correndo perigo de vida e já estavam muito reduzidos.

Após perder seus familiares e também sua terra, o que sobrou aos poucos restantes foi a melancolia. Ivaneide Bandeira, de 57 anos, é indigenista da ONG Kanindé e trabalha há mais de 30 anos na Amazônia. Ela acompanha de perto a história dos Juma. “Quando eles viviam com os Jupaú, conhecidos como Uru-eu-wau-wau, estavam tristes sem poder exercer sua própria identidade porque estavam na terra de outro povo, então acabavam tendo que obedecer outras normas e códigos sociais. O Aruká era muito triste porque sempre foi o líder do povo dele e lá não se sentia respeitado como estava acostumado.”

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Aruká e suas três filhas: a última família. Crédito: Gabriel Uchida

Somente em 2013, e com um número ainda mais reduzido, os Juma voltaram para a sua terra – de mais de 38 mil hectares e demarcada e homologada desde 2004. Ivaneide acompanhou o processo: “Quando o Aruká retornou para a sua área, ficou orgulhoso de voltar a liderar o seu povo e de ter sua cultura e identidade Juma valorizadas, ele estava super feliz em construir suas próprias moradias com as filhas”.

Os pais de Aruká morreram há tempos. A mãe padeceu por conta da malária, enquanto o pai foi assassinado por um seringueiro. Aruká sonhava em construir uma nova maloca para seu povo, mas o número reduzido de índios impediu que isso se torna-se realidade. Agora próximos de uma unidade da Funai, o último Juma ainda reluta em sair de sua região. “Não gosto muito da cidade porque tenho rancor do branco. Ele matou meus parentes.”

O acesso até o local é difícil. Do município de Humaitá, que fica a 11 horas de carro de Manaus, segue-se pela Transamazônica em uma interminável reta sem asfalto. Dependendo do tempo, os buracos e a terra viram lama que mais parece sabão sob os pneus. Mesmo com uma caminhonete com tração nas quatro rodas é extremamente difícil completar este trecho que leva em torno de 3 horas, dependendo das condições climáticas. Depois disso ainda falta uma hora de barco até a aldeia, que está às margens do rio Assuã. Um pequeno porto é a entrada das embarcações e também o local para o banho. Dali ainda é puxada a água para algumas torneiras improvisadas.

O sofrimento histórico dos Juma é refletido em sua aldeia: diferentemente do que é encontrado em outras terras, ali não tem posto de saúde, nem igreja, nem pajé e nem campo de futebol. Também não tem eletricidade e o único gerador a gasolina está quebrado. São apenas cinco casas, uma construção para a escola que foi montada mas nunca funcionou e um pequeno tapiri tradicional onde os habitantes se reúnem para as refeições. Além dos quatro sobreviventes, também moram no local alguns indígenas de outras etnias ou já misturados. No entorno da aldeia encontra-se mandioca, castanha e milho. Eles mantêm a tradição de caçar e pescar, principal fonte de alimento e também diversão para as crianças.
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Apesar da idade, o senhor Aruká tem um corpo imponente, anda com firmeza e caça sozinho. Ele fala pouco e quando o faz é breve e apenas na língua indígena – não entende o português. Mas seus olhares são poderosos e ele está sempre atento. Enquanto todos comem, conversam, fazem piadas e fumam tabaco, ele se senta na ponta da mesa e fica calado observando como se estivesse tomando conta de tudo. Aruká não gosta muito de ter sua rotina incomodada.

Aruká sente o peso de ser o último dos seus. “Hoje em dia sinto sozinho e penso muito em antigamente, que tinha muita gente”, desabafa. “A gente era muitos e depois vieram o seringueiro e o garimpeiro para matar o povo Juma todinho.” Enquanto acompanha a vida de suas filhas e toma remédios para dores nas costas, o derradeiro Juma pensa no que já se foi. “Antigamente o Juma era mais feliz… e hoje só tem eu.”

Fonte: Risca Faca

Texto e fotos de Gabriel Uchida

Identidades nacionais ferramentas de dominação

Em sociedades desiguais como as não-indígenas, identidades nacionais são antigas ferramentas de dominação na mão das elites locais sobre a maior parte da população. Através dessas identidades, uma minoria formada por políticos, fazendeiros e empresários (que são as elites) impõe seus interesses a uma população maior e diversa. Estas elites vêm por gerações concentrando poder e recursos, da relação de dominação das massas que controlam.

“Nacionalidades” estão relacionadas a práticas de saque e destruição que enriqueceram as elites européias coloniais. Esta é a origem pouco lembrada dos termos “argentino” e “brasileiro”.

“Argentino” vem da palavra “argentum” que significa “prata” em latim. Depois que europeus descobriram ouro e prata no continente sua ganancia se tornou avassaladora. Pilharam muitos povos, assassinaram e escravizavam outros para tomar o controle das minas e rios em que esses metais se encontravam.

Utilizaram os rios para levar em navios os metais para Europa. Um dos rios mais largos que melhor serviram aos saques espanhóis foi chamado de Rio del Plata, ou Mar del Plata. Davam os nomes aos lugares conforme aquilo que podiam pilhar, é aí que se encontra a triste origem da identidade “argentina”.

Os primeiros a serem chamados “brasileiros” foram indígenas que foram convencidos a derrubar grandes árvores daquela vasta floresta atlântica que existia na região nordeste do que hoje chamamos “Brasil”. Faziam isso em troca de miçangas, machados, espelhos e outras quinquilharias que os europeus traziam em seus navios. Levavam para seus países estas árvores de madeira avermelhada, da cor-de-brasa, que chamaram “pau-brasil”. “Brasileiros” era o nome dado a esses lenhadores, madereiros aliados dos portugueses, que derrubaram florestas que só existem em imagens de livros de história. Em troca dessa aliança estes povos foram levados a extinção.

Não foram poucos os nacionalistas, defensores das identidades nacionais, que ambicionaram a substituição das identidades indígenas por identidades nacionais. Por vezes essa substituição foi camuflada com discursos de apologia a mestiçagem para convencer indígenas e negros a colaborarem com políticas de branqueamento.

À memória de Augusto Opë da Silva e de Francisco Rokág dos Santos

No dia 31 de maio de 2014, Augusto Ope morreu aos 58 anos. No dia 17 de agosto de 2015 se foi também Francisco Rokág aos 53.

Ambos morreram com pouco mais de um ano de diferença, ambos se foram por conta do câncer, esta maldita doença que se alastra como epidemia pela civilização.

Em 1985 Augusto se envolveu na luta pela retomada da terra kaingang de Iraí, que então estava na mão de colonos ali assentados por décadas, pelas políticas antiindígenas do estado brasileiro. Francisco também lutou desde cedo e a luta o levou caminhar para reaver as terras roubadas de seus ancestrais em Porto Alegre, São Leopoldo ou Lageado, e outros lugares.

Augusto e Francisco lutaram com sabedoria, relembrando a história de seu povo e repassando seu conhecimento para os mais jovens. Nenhum dos dois se deixaram abater quando o câncer, a doença dos fög tomou seus corpos. Seguiram lutando enquanto tiveram forças.

Tanto Augusto quanto Francisco são lembrados por seus amigos, yambré e rengré pela sabedoria tranquila e palavras fortes. Ambos lembravam de um tempo de seus ancestrais, quando a terra era fértil e havia abundância, lhes dava todo o necessário para uma boa vida.

Augusto foi um grande promotor da saúde entre seu povo. Denunciou em vida formas do genocídio a que os Kaingangs estão submetido, os remédios dos fög que fazem as pessoas adoecerem, e a comida dos civilizados, que ao invés de nutrir, enfraquecem e podem matar.

Seu Chico, foi um sábio e grande gaiteiro que conhecia a vida na mata, um líder de seu povo. Sua morte também se deu por conta do descaso racista com que são corriqueiramente tratados indígenas pelo sistema de saúde estatal do Brasil. Francisco Rokag recebeu um diagnóstico de tuberculose errado, e seguiu tratando essa doença por anos, enquanto era um câncer que o consumia.

Augusto Ope e Chico Rokág estão mortos, ainda assim suas pegadas seguirão vivas, chamando e levando outras gerações à luta.

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Saberes ancestrais indígenas

O que nos ensinam os indígenas é antes de tudo, valores e relações. Vínculos com a Terra que, apesar de séculos de colonização, seguem vivos. A perspectiva ameríndia enxerga a potência na “diferença”, seus modos de ser mostram que é possível manter afinidades e conexões sem necessidade de sustentar uma mesma perspectiva. Os ameríndios nos lembram que somos capazes de nos fortalecer com a alteridade não-hierárquica aprendendo uns sobre os outros.jeroky ñemboe

Em memória do Guerreiro Augusto Opë Kaingang

Disse Augusto Ope da Silva que compreendeu importância da luta ancestral pela terra em 1983. Augusto foi um importante líder kaingang dos nossos tempos. Num tempo em que muitas lideranças cooptadas pelo aparato colonial prejudicam seu povo, Augusto, pelo contrário é lembrado por seus Yambré e Kangré por sua sabedoria tranquila e suas palavras fortes.

Lembrava-nos Augusto que antes da invasão europeia os territórios de seu povo se estendia do sul do atual estado de São Paulo até o Rio Grande do Sul. Dizia-nos que a terra era fértil, havia caça e pesca em abundância, e que o meio em que viviam lhes dava tudo necessário para uma boa vida. Após cinco séculos de invasão dos fög os territórios kaingang foram reduzidos a retalhos, refúgios e fundões. O processo de colonização que exterminou 98% das populações indígenas, no entanto, não conseguiu acabar com os kaingang – cortou-se os galhos, ficaram as raízes – que voltaram a crescer em número e se organizarem entre si.

 

Em 1985 Augusto se envolveu na luta pela retomada da terra kaingang de Iraí, que então estava na mão de colonos ali assentados por décadas, pelas políticas antiindígenas do estado brasileiro. Após iludir as populações indígenas com promessas e truques legais como a lei de terras que criou marcos e divisas das terras indígenas para o confinamento, o estado brasileiro decidiu assentar colonos nas terras kaingang em uma espécie de reforma agrária dentro destas terras, fazendo com que em 1962, muitas populações acabassem em desgraça.

Após um período de articulação, cansados das armadilhas estatais, os Kaingang  “sobreviventes do massacre feito no passado” partiram para a ação direta, expulsaram os colonos das terras usurpada de seus ancestrais, refutando a política etnocida que transformava seus territórios em pequenos aldeamentos.

Augusto foi um guerreiro dessa conjuntura, deste período de retomada pelas terras, quando a malha de mentiras do estado dos brancos já não escondia mais as injustiças que criava. Augusto lutou com sabedoria, relembrando a história de seu povo e repassando seu conhecimento para os mais jovens. Como raramente acontece Augusto foi reconhecido em vida: jovens kaingangs lhe prestaram homenagem dando seu nome à uma escola indígena no município de Santa Maria.

Augusto Ope não traiu seu povo, não foi líder pacificador e conciliador a serviço dos interesses dos fög, foi o avesso disso.Não teve medo de dizer o que precisava ser dito, nem teve receio de chamar seus parentes para a guerra pelo futuro das gerações, mesmo que isso levasse a morte. Antes a morte que a falta de dignidade. Disse uma vez diante das tropas de choque mobilizadas contra seu povo na cidade de Porto Alegre,  “Os Kaingang não tem medo de morrer, os Kaingang têm medo de ser esquecidos.”

Sempre apoiou o conhecimento e as práticas dos xamãs kaingang, nunca esquecendo a importância dos kujã na criação de um povo forte contra as doenças impostas pela sociedade industrial dos fög. Participou dos Encontros dos Kujã e nunca hierarquizou o conhecimento kaingang colocando-o abaixo dos saberes biomédicos, reconhecendo sua importância milenar.

Não se deixou abater quando o câncer, a doença dos fög tomou seu corpo. Seguiu lutando enquanto teve forças. Denunciou os remédios dos brancos que adoecem, a comida dos brancos que ao invés de nutrir, enfraquecem e podem matar.

Como ninguém é pedra para durar para sempre Augusto Ope se foi aos 58 anos. Faleceu no dia 31 de maio de 2014 em decorrência do câncer. Ainda assim sua memória segue viva e atuante entre os kaingang que a relembram em seus encontros. Suas palavras serão lembradas pelas gerações que virão.