Category Archives: Mbyá

‘Nós queremos produzir e viver na cultura’: a vida na retomada dos guaranis no litoral norte do RS

Os guarani mbya constroem a casa de reza na entrada do acampamento da nova aldeia, dentro da área da Fepagro | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Fernanda Canofre

Dois quilômetros de caminhada e a Mata Atlântica vai se fechando cada vez mais pelo caminho. A estrada, que permite a entrada de carros até metade do trecho, vira um trilho onde só os pés podem seguir. Um pouco mais adiante, à esquerda, um galho atravessado entre duas árvores, indica o ponto onde virar. São mais uns 100 metros de mata até os olhos chegarem à clareira onde 80 indígenas Mbya Guarani constroem o acampamento da retomada de suas terras, com a casa de reza, construída com barro fresco, guardando a entrada da nova tekoá.

No centro do acampamento de barracas, a lona preta – tão comum às margens de rodovias gaúchas – aqui abriga homens, mulheres e crianças da chuva de verão que cai no fim da tarde, no meio de um pedaço remanescente de floresta. A música da rabeca, a panela cozinhando milho, o cheiro do fumo que sai do cachimbo e da lenha que queima são os guaranis voltando à terra como a conhecem desde sempre.

A aldeia recém-nascida está localizada dentro da área da Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária (Fepagro), em Maquiné, no litoral norte do Rio Grande do Sul. No final da tarde do dia 27 de janeiro, cerca de 30 famílias indígenas, vindas de Barra do Ouro, Varzinha e de um acampamento da zona rural de Maquiné, ocuparam o local pacificamente, buscando as terras que foram de seus antepassados.

O Cacique Cirilo é o único apontado em processo de reintegração de posse movido pela Procuradoria Geral do Estado | Foto: Guilherme Santos/Sul21

“Maquiné já é a língua guarani. É como capim. Fizemos a retomada de várias regiões aqui, porque o passado aqui é dos guaranis”, explica o Cacique Cirilo Morinico. “No passado, território indígena, [agora] foi criando propriedade privada, com cerca. Estamos enfrentando isso hoje porque, nossos futuros guaranis, que ñanderú, nosso criador na Terra – ñanderú é como chamamos Deus – foi criando Terra para viver da nossa cultura, nossa tradição”.

Os indígenas dizem que a área tem “tudo preparado para viverem ñande reko”, como chamam o modo de vida guarani. A maioria das famílias que participam da retomada em Maquiné vivia até agora em terras não-produtivas, algumas demarcadas pela Funai (Fundação Nacional do Índio), como é o caso de terra Campo Molhado, ou à beira de estradas. Cacique Cirilo conta que nas terras onde os colocaram o plantio era difícil. “É um processo de luta, de sofrimento. Você vai na área demarcada, não produz milho e não tem a comida típica, como vai sobreviver ali? Não produz porque é muito frio. Então, na verdade, tudo isso é sofrimento. Nós precisamos terra boa também para produzir, para ter alimentos, para as crianças se sustentarem (…) aqui a terra não é lavrada, aqui é bem produtiva”.

Na área do governo do Estado, eles encontraram terra fértil e rios, chás e remédios para curar todo tipo de doença, velhos conhecidos dos guaranis. “A minha filha, que tem 6 anos de idade, tomou banho de rio pela primeira vez aqui. Porque onde nós moramos a água vem de caminhão pipa. Enquanto os filhos de vocês podem frequentar os melhores balneários, os melhores clubes, o nosso povo, que é originário dessa terra e que caminhou muitos anos nessa terra, tem sido jogado fora”, diz Merong Tampuramã, índio Pataxó Hãhãhãe, casado com uma guarani, que vive em Erebango, no noroeste do Rio Grande do Sul.

Os caciques Cirilo e André, junto ao indígena Merong, na entrada da propriedade ocupada | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Governo considera retomada ‘invasão’

A área ocupada pelos indígenas foi adquirida pela Secretaria de Agricultura em 1948. O Estado desapropriou a área de 335 hectares para fins de atividades públicas e indenizou pequenos agricultores, descendentes de alemães, açorianos e italianos, que viviam no local. Na época, o projeto para a região de Maquiné era a instalação de uma estação experimental de pesquisa. Entre o final dos anos 1970 e pela década de 1980, quando o país vivia a chamada “Revolução Verde”, o Centro de Pesquisa de Maquiné chegou a ter 50 funcionários produzindo e trabalhando em estudos. Hoje, são 3 pesquisadores e um funcionário.

Segundo Rodrigo Favreto, engenheiro agronômo que trabalha há 15 anos na Fepagro de Maquiné, por muitos anos o local sofreu por falta de investimentos. Um concurso convocado no governo Yeda Crusius (PSDB) e outros projetos seguidos por Tarso Genro (PT), com verba do governo federal, trouxeram ao centro R$ 1,2 milhão de investimentos em 6 anos. O engenheiro diz ainda que, embora “visivelmente não apareça”, o centro do litoral norte é “o com mais pesquisas da Fepagro”.

Parte da propriedade da Fepagro, retomada pelos guaranis, indica abandono | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Entre os projetos tocados em Maquiné estão pesquisas com frutas tropicais – cerca de 80% da produção de abacaxi e 70% da de banana do estado saem do litoral, segundo ele – de melhoramento genético de feijão, plantas nativas, como a palmeira juçara e a goiabeira serrana e de preservação da Mata Atlântica, com sistemas agroflorestais. Um dos projetos desenvolvidos ali, por exemplo, é o plantio do palmito nativo dentro dos bananais já existentes, para aumentar a produtividade da terra. O projeto é tocado em propriedades rurais da região e Favreto diz que cerca de 20 produtores já estariam licenciados para aplicá-lo.

Em dezembro, a Fepagro foi uma das fundações encaminhadas para extinção no pacote do governador José Ivo Sartori (PMDB). Porém, diferente de outras fundações, com apenas funcionários estatutários, a Fepagro não terá nenhum demitido. Segundo o chefe de gabinete da antiga Fepagro, Arceli da Silveira, “os servidores serão remanejados”. Na prática, ela perdeu a autonomia de fundação e passou a ser Departamento de Diagnóstico e Pesquisa Agropecuária, dentro da Secretaria de Agricultura. Desde o início do governo atual, o Centro de Maquiné, já vinha sobrevivendo com corte no custeio. No ano passado, descontando gastos e o que foi produzido na propriedade, o Centro de Maquiné fechou o ano com gasto de R$ 8 mil.

“Não sei até que ponto [os indígenas] sabiam ou não que tinha atividades acontecendo, porque essa mensagem que o governo levou da extinção, mostrou que, ‘bom, vai ser privatizado’”, avalia Rodrigo Favreto. “A gente também não sabe ainda, porque o governo não disse exatamente. Numa carta que mandou aos servidores ele diz: ‘não sabemos ainda o que vai ser em cada um dos centros, não foi decidido ainda’. A gente não sabe qual a intenção do governo para essa área. A nossa intenção, como servidores, entendendo a importância da pesquisa que está sendo feita e que a gente não vai ser demitido, ainda mais considerando esse contexto de Mata Atlântica, a gente entende que a pesquisa deve continuar”.

Os indígenas relatam que, em 20 dias no local, já flagraram caçadores e extração ilegal de palmito, como se fosse hábito na região. “Nós chegamos aqui e estava tudo abandonado, ninguém cuidou. Entramos na mata e estavam cortado o palmito. Mas roubaram. Nós pegamos dois brancos pegando, segurando. Pegamos de surpresa, até ficamos assustados”, relata o Cacique Cirilo.

O engenheiro agrônomo Rodrigo Favreto trabalha no Centro de Maquiné há 15 anos e vive na propriedade com a esposa | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Vivendo na propriedade há 8 anos, junto com a esposa, Favreto diz que foi comunicado pelos indígenas sobre a retomada na mesma tarde em que chegaram. Ele explicou aos guaranis que teria de avisar a Brigada Militar, como um procedimento de praxe. Sem efetivo na cidade, no entanto, os policiais não compareceram ao local. No dia seguinte, os índios ocuparam a sede administrativa da Fepagro por algumas horas. O incidente de um pedaço de vidraça quebrado é citado no relatório da PGE. No mesmo dia, porém, eles se retiraram e instalaram as barracas no mesmo espaço onde estão estabelecidos agora, a 2 quilômetros de distância da entrada da propriedade. O próprio engenheiro diz que, apesar de o grande número de pessoas circulando pela área podendo comprometer pesquisas, a convivência tem sido “tranquila e pacífica”.

“As árvores interessam para o governo? Ou será que ele pretende transformar isso em lavoura de soja, em condomínio fechado? O nosso povo precisa usufruir daquilo que é dele, que é da natureza e precisa estar aqui nesse território como guardião da natureza”, defende o indígena Merong.

Na propriedade, placas em protesto à extinção da Fepagro pelo governo estadual | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Quando a reportagem chegou ao escritório administrativo da Fepagro, na área ocupada pelos índios, Rodrigo estava sentado ao computador redigindo um relatório a pedido do Ministério Público Federal, relatando as atividades desenvolvidas no Centro de Pesquisa de Maquiné. O processo que pede a reintegração de posse da propriedade, da Procuradoria Geral do Estado, cita em vários pontos “pesquisas” e “plantações” que mereceriam “zelo e preservação”, mas não especifica nenhuma delas.

O pedido de reintegração de posse foi entregue na Vara Federal de Capão da Canoa logo após a reunião realizada entre indígenas, o Centro Indigenista Missionário (CIMI), a Secretaria de Agricultura e a PGE. No processo, a retomada é classificada pelo Estado como “invasão” e a Funai e o Cacique Cirilo são apontados como réus. Como provas, a Procuradoria anexou reportagens que noticiaram a entrada dos indígenas na área e fotos retiradas dos perfis de apoiadores e dos próprios indígenas em redes sociais. A PGE pede ainda urgência na retirada dos guaranis do local, alegando que “a situação está se consolidando, sendo que o decurso do tempo só acarretará maiores prejuízos ao Estado, especialmente porque essas moradias terão que ser derrubadas, enquanto que o material nela empregado sequer é recuperável”.

Crianças guarani voltaram a conviver com a natureza dentro da área preservada de Mata Atlântica | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Terra com a proteção de Tupã

A primeira coisa que os guaranis fizeram assim que cruzaram a cerca que marca a propriedade do Estado, foi começar o ritual de reconhecimento entre eles e suas terras. Os cânticos dos indígenas, logo se encontraram com os dos pássaros da Mata. Assim eles sabiam que eram aceitos, como se um acordo entre eles e a natureza estivesse firmado. Em seguida, pediram a Tupã por um nome para a nova aldeia e por proteção. O nome ainda não se revelou. Mas ele vem, acredita o Cacique.

Os guaranis eram um dos povos tradicionais da região do litoral norte gaúcho. Antes da chegada dos portugueses, o Brasil chegou a ser território de 1,5 milhão de guaranis. Pelo menos seis vezes mais do que o número calculado no século XVI, quando o genocídio de seu povo teve início. Foram dizimados na proporção de 1 sobrevivente para cada 500 mortos. “O tronco indígena que mais contribuiu para o Brasil”, segundo o antropólogo Darcy Ribeiro. Hoje, a estimativa é de que existam no país 7 mil Guaranis Mbya.

Em geral, as aldeias guaranis são jovens. Condições precárias de vida e falta de políticas colocaram o povo indígena sob ameaça, especialmente nas últimas décadas. Na aldeia formada dentro da Fepagro também é assim. É difícil encontrar entre eles alguém que aparente mais de 30 anos ou tenha cabelos brancos. Apesar de as mulheres não falarem português, como os homens, no trabalho a divisão é igual. Homens e mulheres vivem em condição de igualdade dentro da aldeia.

Poty se diz “feliz” na nova terra | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Uma delas, Jaxuka Poty, cercada pelos 4 filhos, que só conheciam a vida dura de uma terra sem plantio, parece feliz com a ideia de futuro ali. “Eu estou feliz por estar aqui em meio a floresta. Eu vejo os rios e o som dos pássaros, a terra é fértil para o plantio, estou muito feliz por estar aqui com meus filhos, com essa construção da Casa de Reza, e a gente acredita que nosso Deus Tupã abençoará essa retomada”, diz em um guarani manso, traduzido por um companheiro de aldeia, enquanto ela ceva o cachimbo.

O Cacique da terra de onde veio Poty, na zona rural de Maquiné, André, abre o sorriso para dizer que “tudo já mudou para melhor”. “Criança tem que cuidar toda hora, de carro, de violência, mas chegando aqui muda totalmente”, diz se desculpando por ainda estar aprendendo o português.

No caminho até a aldeia, André conta satisfeito que vê os quatro filhos e as duas filhas retomando um contato com a natureza, do qual seu povo foi se afastando. “Aqui retomamos área, mas não é só área que estamos retomando. Estamos resgatando nossa cultura que está parada há muito tempo. A sociedade fala que os povos guaranis estão perdendo sua cultura, mas não estamos perdendo, apenas não temos condições de continuar. Todas as aldeias são pequenas, não tem remédio, não tem fruta nativa, não tem como seguir com nosso modo de viver. Nós [aqui] estamos felizes, temos alegria com as próprias pessoas e com a natureza”.

Enquanto ele termina de falar, o milho segue cozinhando, a cobertura do telhado da Casa de Reza já está quase completa e as crianças cantam e dançam lado a lado para fechar outro dia. Apesar do que dizem os documentos e mesmo com ação de reintegração de posse sendo colocada em curso a quilômetros dali, debaixo da lona preta, os pés deles lembram que a terra é guarani.

Foto: Guilherme Santos/Sul21

Foto: Guilherme Santos/Sul21

Foto: Guilherme Santos/Sul21

 

Fonte: Sul21

 

Guarani Mbya retomam área tradicional em Maquiné

(Abaixo parte da matéria de Ana Maria Barros Pinto para o Jornal Já)

Surge uma nova aldeia Guarani Mbya no RS, em uma área de mata atlântica na Estação da Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária (Fepagro), em Maquiné (litoral norte). Um grupo de cerca de 80 pessoas – adultos, jovens e crianças- entraram pacificamente na área no final de janeiro e fizeram um acampamento, na ação que eles chamam de retomada.

A área de 367 hectares é reivindicada pelos Mbya em nome da ancestralidade. “É território dos nossos antepassados guarani, somos um povo e queremos respeito às nossas tradições e cultura”, diz o cacique Andre Benites. Ele conhece bem a região: cresceu por ali, em situação precária, assim como outras famílias, plantando em pequenos pedaços de terra cedidos por moradores. Começaram a organizar a retomada assim que souberam da extinção da Fepagro, através de projeto de lei aprovado pela Assembleia Legislativa em dezembro de 2016.

A opy, casa onde são realizadas as rezas, é tradicional nas aldeias

Grupo já construiu um opy, casa onde são realizadas as rezas, tradicional nas aldeias

Nessa terra, explica o cacique André Benites, há mata nativa com frutas silvestres, terra boa para o plantio de alimentos e remédios (ervas medicinais) e um rio. Ou seja, os recursos naturais que permitem o manejo das espécies tradicionais da cultura guarani estão preservados. A retomada é também uma reação ao descaso dos governos, que Benites define assim: “Estamos esquecidos na beira de estradas, vivendo em acampamentos precários. Queremos viver com dignidade, que o Governo reconheça isso”.

O cacique Cirilo Morinico, da aldeia Anhetenguá, da Lomba do Pinheiro em Porto Alegre, se juntou ao grupo

O cacique Cirilo Morinico, da aldeia Anhetenguá, da Lomba do Pinheiro em Porto Alegre, se juntou ao grupo

O cacique Cirilo Morinico, da aldeia Anhetenguá, da Lomba do Pinheiro em Porto Alegre, se juntou ao grupo pela conquista da tekohá (terra, aldeia). Com voz tranquila e pausada, como é característica deste povo, Cirilo fala que os guaranis são orientados por Nhanderu (Deus) e têm esperança na retomada. “Queremos mostrar para a sociedade que o nosso povo tem tradição, espiritualidade, uma cultura que tem de ser preservada. Hoje vivemos em pequenas áreas, como passarinhos cercados. Aqui no nosso território ancestral tem vida”.

A retomada teve vários desdobramentos: os mbya foram chamados para uma audiência na sede do Ministério Público Federal de Capão da Canoa, no dia 3 de fevereiro, onde reiteraram aos procuradores os motivos da decisão de retomar o território ancestral guarani. A disposição é de resistir; a palavra é negociação. Aguardam o despacho do juiz federal marcando audiência. No âmbito estadual, há uma ação de reintegração de posse feita pela Procuradoria Geral do Estado, mas sem pedido de liminar. Será marcada uma audiência.

Fonte: Jornal Já

Mbya afirmam que estão seguindo passos de deuses e ancestrais após duas semanas de retomada em Maquiné (RS)

Com mais de 15 dias de retomada, os Mbya já ergueram sua casa cerimonial (opy), e estão construindo casas ao modo tradicional.

Às noites realizam seus rituais, com cantos e danças espirituais. Como pode ser lido em uma faixa na entrada da área, estão seguindo os passos de seus deuses na retomada das terras ancestrais. Parte de seu território histórico, e na visão mbya as terras retomadas são ideais para seu modo-de-ser (tekó).

Pela presença de plantas e animais, por ser boa para plantar, os mbyá dizem aos visitantes que se sentem alegres (vy’á) pela retomada desta terra. A alegria – manifestada no canto dos pássaros e das crianças – como entendem, para além de um sentimento, é também ritual de fortalecimento e manifestação da satisfação dos deuses.

Os líderes do grupo afirmam que seus deuses são os verdadeiros donos da terra, e não o estado dos juruás (os não-índios). Afirmam também que os deuses – dos quais são descendentes – lhes deram a verdadeira “reintegração de posse” daquela terra.

Visitas de colaboradores e apoiadores ocorrem todos os dias. Os líderes do grupo mbya comunicam a seus apoiadores que seguem precisando de lonas, alimentos, roupas, ferramentas e pregos para acomodar melhor jovens e crianças. Também disseram que necessitam de fumo-de-corda para uso ritual.

Segundo dia da retomada guarani mbyá da área ocupada pela FEPAGRO no sul do Brasil

Sábado, 28 de Janeiro de 2017.

Durante todo o dia, famílias indígenas Guarani Mbyá chegaram à área da Fundação Estadual de Pesquisas Agropecuárias (FEPAGRO) no município de Maquiné-RS. Reivindicando esta área como parte de território tradicional ancestral, desde ontem um grupo deste povo está acampado na fundação, que recentemente foi extinta pelo governo do estado.

Uma das lideranças mbyá presentes explicou a necessidade de retomar os territórios onde viviam seus antepassados pelo futuro das crianças mbyá, lembrando que não são os Guarani que vivem em desequilíbrio com a natureza”

“Nós vivemos com a natureza. Nossos ancestrais viveram aqui durante muitos anos e depois os massacraram. Agora nosso futuro são as crianças. As crianças daqui pra frente vão se criando, nós pensamos para o futuro.” – Líder Guarani

Após passarem a noite acampados, um grupo formado em grande parte por jovens e crianças, foi até o escritório administrativo da FEPAGRO, utilizando estas dependências para ter acesso a eletricidade e à água.

Segundo os próprios guarani mbyá, o diretor da unidade Rodrigo Favreto esteve pela manhã deste sábado entre os indígenas e afirmou que acreditava que sua demanda era legítima, e não um “caso de polícia”. Mas ainda assim, disse que precisaria reportar as autoridades o ocorrido por conta de qualquer possível dano ao patrimônio. Os indígenas afirmam que não possuem interesse em danificar o patrimônio da extinta fundação, sua luta é por seu território ancestral.

Após convidarem os parentes de outras localidades a se unir a eles na luta por esta terra através de um vídeo postado na internet, as lideranças do grupo mbyá pediram auxílio a todos os apoiadores e apoiadoras de sua causa, afirmando que precisam de lonas, ferramentas e alimentos para que sigam acampados. Solicitaram ainda aos meios de informação – em especial às mídias alternativas – que sua história seja divulgada.

Pela tarde, uma equipe da rádio local esteve no acampamento pedindo uma entrevista sobre o assunto, e vizinhos, amigos e apoiadores da causa indígena de diferentes localidades, visitaram o acampamento na unidade da FEPAGRO em Maquiné, levando mantimentos.

Índios Guarani Mbyá retomam terra ocupada por Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária no Rio Grande do Sul

Vindos de diferentes localidades grupos e famílias do povo indígena Guarani Mbyá se reuniram nesta tarde, para retomar parte de seu território tradicional, no município de Maquiné, Rio Grande do Sul, no sul do Brasil.

A área de 300 hectares que estava ocupada há décadas por uma unidade da Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária do Rio Grande do Sul, foi retomada sem violência pelos Guarani Mbyá que estão agora nela acampados. A FEPAGRO foi uma das fundações recentemente extintas pelo governo do estado do Rio Grande do Sul.

Formado por oitenta pessoas, entre homens, mulheres e crianças de diferentes faixas etárias, o grupo pretende permanecer acampado na área até que seja reconhecida sua demanda.

Líderes presentes afirmaram que estão cansados de esperar que suas demandas pela demarcação de suas terras tradicionais sejam atendidas pelo governo. Diante da morosidade das autoridades competentes, os Guarani Mbyá decidiram em conjunto retomar esta terra que foi de seus antepassados massacrados pelas frentes de colonização, para que seus filhos pudessem ter um futuro digno.

Conselho Mbyá Guarani barra madereiras em terras indígenas na argentina

No dia 27 de julho , os Mbyá-guarani reuniram-se para mais um encontro Aty Nhexyrõ – conversa em roda. O encontro ocorreu na aldeia Ka’ákupe, em Misiones, Argentina. Foi marcado pela primeira vez que o Estado argentino realizava uma consulta prévia aos povos originários a respeito do interesse de empresários em explorar áreas indígenas.

Como um verdadeiro fantoche de interesses privados, o Estado argentino apareceu ao lado dos empresários, advogados e engenheiros das empresas. Dizia mediar a reunião, mas depois os próprios empresários revelaram que já possuíam uma autorização do Ministério de Ecologia y Recursos Naturales para cortarem as árvores que queriam.

A primeira empresa, Coschirt, apresentou seu projeto de explorar 641 hectares localizados a 100 metros das casas mbyá na aldeia de “Arroyo 9”, defendendo que só iriam cortar as maiores árvores por “não servirem para mais nada”. A resposta das lideranças foi veemente: “Não”. Os motivos eram muitos: como medir a serventia de uma árvore se até ela cair sua casca serve de medicina, e suas frutas, cada vez mais maduras, servem de alimento às crianças? Os empresários antes otimistas com suas explicações técnicas amparadas na legislação ambiental argentina não acreditavam no que ouviam. Vherá, filho de Tupã, bradou que se os empresários viessem com suas máquinas destruindo a floresta, Tupã viria logo atrás com seus raios e trovões, passando por cima não mais dos mbyá, mas dos brancos que ali estivessem. Com força gritou que a luta cosmológica mbyá é para manter os céus em pé para todos, não só para eles. Por isso tudo, mas não por tudo isso a resposta a empresa era: “Não, que voltassem para suas casas”.

Depois de uma saraivada de críticas aos interesses dos primeiros engenheiros. A segunda empresa, Carbac SA, apresentou um discurso muito mais moderado. O caso era que eles possuíam uma autorização de um antigo cacique para explorarem uma área de 2932 hec. a menos de 50 metros das casas mbyá na aldeia de Kaá Poty. O detalhe era que o antigo cacique era analfabeto, cego e extremamente doente quando assinou tal autorização – veio a falecer poucos meses depois. Mais uma vez os Mbyá mostraram sua força e mandaram parar todas as máquinas da empresa, revogando a autorização do antigo cacique.

A reunião terminou com os Mbyá dançando tangará ao som do violão e violino, e cantando: yvy pave mba’é, yy pave mba’é, kaygua pave mba’é – “A terra é pra todos, a água é pra todos, as matas são pra todos”

Autor de laudo que questiona tribo foi expulso da Associação de Antropologia

 Especialista questiona origem brasileira dos indígenas sem nunca ter visitado aldeia

A Fatma, órgão de licenciamento ambiental do Estado de Santa Catarina, não tem competência sobre a questão indígena, mas contratou no ano passado um antropólogo para desconstruir em apenas um laudo estudos que renomados antropólogos fizeram durante três décadas sobre a aldeia de Itaty. Os laudos são instrumentos vitais para reconhecimento das terras indígenas. Através de estudos minuciosos contratados pela Fundação Nacional dos Índios (Funai), os pesquisadores identificam se o território é ou não uma ocupação desses povos. Após análise na Justiça em todas as instância e contestação de todos os interessados, o Ministério da Justiça publica o reconhecimento. Por fim, cabe à presidência da República assinar a homologação.

Índios Guaranis protestam contra PEC 215

Edward Luz, antropólogo contratado pela Fatma, é antes evangelizador da New Tribes Mission Brasil, criada na década de 50 por missionários norte-americanos para “salvar os tribais não alcançados” pela Bíblia. Já eles alcançam os “Confins da Terra” – como relata o título da revista mensal da congregação. A New Tribes ergueu igrejas em 47 das 340 etnias brasileiras. Há obreiros de cristos no Senegal, Guiné, Costa do Marfim e Moçambique.

No site, o presidente da instituição Edward Luz, pai do antropólogo que tem o mesmo nome, justificou sua intenção: “Pensando em valores eternos, Jesus é o caminho, a verdade e a vida e ninguém vai ao Pai sem ele. É necessário que os índios ouçam Sua mensagem e é só Deus que pode manejar a política humana. Deus está edificando Sua Igreja e as portas do inferno não prevalecerão”.

Na luta contra o diabo, a pedagogia é aliada. A New Tribes possui duas escolas no Brasil para “ganhar almas para eternidade”. O Instituto Bíblico Peniel, em Minas Gerais, e o Instituto Missionário e Linguístico Shekinah, no Mato Grosso do Sul, preparam jovens para abandonar o conforto do lar em nome de Cristo. Mas o termo “mercado de almas” nem sempre é figurado.

A New Tribes foi expulsa de terras indígenas pela Funai em 1991, acusada de escravidão, exploração sexual e tráfico de crianças indígenas. O processo foi arquivado. Segundo a Funai, eles também foram acusados no final da década de 1980 de dizimar os Zoé, na região de Santarém, no Pará, que adoeceram com a presença dos invasores. Por fim foram denunciados por arregimentar almas ribeirinhas, de castanheiros e quilombolas para o trabalho braçal.

No livro A queda do céu: palavras de um xamã yanomami, Kopenawa narra para o escritor Bruce Albert as experiências que teve com os missionários da New Tribes na infância. Ele viu seu povo ser dizimado por duas epidemias infecciosas provocada pelos obreiros. Por esse histórico, a Funai proibiu o trabalho da New Tribes Mission em diversas aldeias do Norte do país e Edward Luz, o filho, foi expulso da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Mas ele não se conforma. Durante a CPI da Funai deixou claro. “Vamos banhar a semente em sangue se for preciso. Se o Governo proíbe pregar o evangelho, está proibindo a liberdade da adoração, proíbe o autor do evangelho, o senhor Jesus. E nós partimos para o confronto”.

Edward também foi desligado por unanimidade do Núcleo de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade de Brasília. Entretanto, a Fatma o contratou, sem ele nunca ter publicado trabalho acadêmico sobre o povo Guarani. O presidente da Fatma, Alexandre Waltrick Rates, justifica que, assim como as referências de Edward são questionadas por alguns, há restrições do Estado quanto aos outros profissionais que fizeram laudos na área.

Em depoimento ao Ministério Público Federal (MPF), Edward admitiu que nunca entrou na aldeia Itaty, que não conhecia os Guarani do Sul do Brasil, que escolheu aleatoriamente cinco indígenas de outras terras para munir sua conclusão e que antes mesmo de desembarcar no Estado negociou com a Fatma a elaboração de um laudo contrário à demarcação. A tese vendida por Edward é que os indígenas da Itaty foram trazidos do Paraguai por ONGs e pela Funai para lucrar terras da União. (Sim, você já leu essa frase antes).

A questão é que todos os moradores da Itaty são brasileiros, seus antepassados estavam ali antes do nascimento dos antropólogos, dos deputados, do governador e dos imigrantes europeus que aprenderam com eles o cultivo da terra e o ofício da pesca. Estavam ali antes do mundo ser dividido em países.

As raízes da guerra aos índios no sul

Aline Torres

Dia 5 de novembro de 1808, D. João VI autorizou por decreto a matança dos índios que viviam no Brasil quando os portugueses aqui desembarcaram. “Desde o momento em que receberdes esta minha Carta Régia, deveis considerar como principiada a guerra contra estes bárbaros Índios”, dizia o documento. Menos de 50 anos depois, o fundador de Blumenau (município a 152.9 km de Florianópolis), solicitou ao governador de Santa Catarina “a desinfecção completa do terreno entre Itajaí Grande e o Mirim, e a destruição e aprisionamento deste bando de rapinas”. Foi fundada a Patrulha dos Bugreiros, contratados pelo Governo para expulsar índios.

Segundo o antropólogo Silvio Coelho dos Santos, para legitimar a ação dos caçadores de Xokleng foi criado um sistema ideológico no qual os índios eram representados como vadios e ameaças a concretização dos ideais de “progresso” e “civilização”. Os bugreiros eram heróis. O governo e o povo os apoiavam e a imprensa os idolatrava.

No jornal Novidades, publicado em Itajaí em 1904, a preferência fica clara. “O chefe da expedição José Bento foi morto pelos bugres. Sua morte deve ser sinceramente sentida. José Bento era um homem muito valente e o melhor dos nossos caçadores de bugres”.

O mais famoso dos bugreiros foi Martinho Marcellino de Jesus, que caçava em Lages. Uma vez chamado para fazer a contagem das mortes, justificou. “Por favor, senhores, deve haver algum engano, eu não matei cem índios. Em defesa dos colonos e de suas propriedades eu matei mais de mil índios”.

É que ser bugreiro era lucrativo. Para receber o pagamento da Companhia de Colonização os caçadores cortavam as duas orelhas dos Xokleng e as entregavam aos agentes, assim se comprovava o cumprimento do serviço. O comércio durou um século. Em entrevista ao padre Leonir Dall’Alba, na década de 70, o bugreiro Ireno Pinheiro contou como trabalhava.

“O assalto se dava ao amanhecer. Primeiro, disparava-se uns tiros. Depois passava-se o resto no fio do facão. O corpo é que nem bananeira, corta macio. Cortava-se as orelhas, cada par tinha um preço. Às vezes para mostrar a gente trazia algumas mulheres e crianças. Tinha que matar todos. Senão algum sobrevivente fazia vingança. Quando foram acabando o governo deixou de pagar a gente. Getúlio Vargas já era governo quando fiz a última batida”.

No caso da Itaty são tão brasileiros que os maiores de 27 anos foram registrados com nomes portugueses, já que antes da Constituição de 1988 não se aceitavam nomes indígenas. Kerexu foi transformada em Eunice Antunes pelo cartório de Limeira, no Oeste. O MPF aponta ainda outro problema. O dinheiro pago para Edward deveria ter sido utilizado como compensação ambiental em Itajaí, mas foi gasto com o laudo. Por essa manobra a procuradora da República Analúcia Hartmann irá mover uma ação contra a Fatma.

Waltrick Rates disse que o laudo foi solicitado para defender os interesses do Estado, já que as terras estão dentro da Serra do Tabuleiro. Ele também defende que a indicação de onde deve ser utilizado o dinheiro cabe ao órgão ambiental para manejo das unidades de proteção.

Em Santa Catarina, há 10 unidades de conservação – Serra do Tabuleiro, Parque Estadual das Araucárias, Fritz Plaumann, Rio Canoas, Acaraí, Rio Vermelho, Serra Furada, Canela Preta, Agual e Sassafrás. Somadas, as terras têm extensão equivalente a Florianópolis. A Fatma designa 17 servidores para protegê-las. Na Serra do Tabuleiro, há 110 construções ilegais, inclusive, casas de veraneio. O órgão ambiental não as questiona na Justiça.

Por outro lado, a PGE pede a anulação da demarcação das terras indígenas com base no marco temporal. O Estado pede provas da existência da Itaty no dia 5 de outubro de 88.

A busca da PGE, no entanto, é facilmente encontrada nos livros de História. Silvio Coelho Santos, um dos fundadores do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), escreve sobre a presença Guarani no litoral catarinense. Na região conhecida como Massiambu há dezenas de sítios pré-históricos. O padre Elias Della Giustina visitou o Morro dos Cavalos e tirou uma série de fotografias dos indígenas e ainda assinou a data atrás delas, 1988. O documento foi utilizado nos trâmites que reconhecem a legalidade do território.

Aliás, até o próprio nome do município onde está situado o Morro dos Cavalos tem origem tupy. E, não por coincidência, o time de futebol mais tradicional se chama Guarani de Palhoça.

As difamações replicadas por Luz, entretanto, não são novidade. Elas são repetidas há anos por três porta-vozes, mas apenas no ano passado ganharam repercussão. O primeiro é o Guarani Milton Moreira, expulso de três aldeias de Santa Catarina, inclusive do Morro dos Cavalos, terra que ele tentou vender por 10.000 cruzados (moeda da época) em 1985 de maneira ilegal, sem a posse das escrituras. Recebeu dinheiro, mas a terra pertence à União atualmente. Na época da venda feita por Moreira, a tribo havia solicitado na Justiça a posse da área. Moreira fez o negócio à revelia do grupo, e por isso foi expulso.

O  comprador das terras, Walter Alberto Sá Bensousan, é outro que propaga a versão do questionado antropólogo. E a terceira, a advogada Suzana Alano, representante da associação de moradores da localidade vizinha à Aldeia Itaty. Em uma das suas campanhas contra os indígenas, ela foi à Assembleia Legislativa de Santa Catarina chamar a atenção dos deputados sobre o caos que os índios trariam caso a homologação fosse efetivada.

Suzana fez as contas e concluiu que 100.000 indígenas, o equivalente à população total Guarani de três países da América do Sul, viriam do Paraguai para a região do Morro dos Cavalos em caso de demarcação. Na realidade, 200 pessoas moram ali, segundo a Funai. Em audiência com a procuradora Hartmann, Suzana alegou que os Guarani vieram indiscutivelmente do Paraguai, pois consomem erva mate, denominada cientificamente como “paraguariensis”. Os três são testemunhas da CPI.

Fonte: El País

Kerexu, a cacica ameaçada de morte que tenta salvar sua aldeia

Aprovação parcial da PEC 215 motivou ataques a região onde vive líder indígena

Kerexu avisou: “vamos ter que nos preparar”. Não deu tempo. Três dias após a PEC 215 ser aprovada em comissão especial no Congresso no final de outubro, a cacica Guarani foi ameaçada de morte. Trinta homens atacaram a aldeia Itaty, liderada por Kerexu, situada no Morro dos Cavalos, no município de Palhoça, a 30 quilômetros de Florianópolis, no sul do Brasil. As 39 famílias que vivem ali testemunharam a entrada de um caminhão, duas motos e 10 carros. Os estranhos dispararam para o alto com revólveres, soltaram rojões, disseram que iriam expulsar as famílias, invadiram uma casa e, se autointitulando donos do pedaço, fizeram churrasco, com direito a música alta.

Cacica Kerexu, ameaçada de morte com avanço da PEC 215

Para a cacica Kerexu, o recado foi curto. Ela está na mira. Os homens não foram identificados e apesar de quatro deles terem passado a noite na aldeia, a Polícia Federal não os prendeu e apenas os retirou por insistência da procuradora da República Analúcia Hartmann. O argumento dos invasores foi que se a PEC iria tirar os indígenas dali, eles poderiam antecipar o serviço.

Essa não foi a primeira ameaça do ano. Há dois meses, motoqueiros entraram em Itaty disparando. A aldeia é habitada principalmente por crianças e adolescentes, que representam 60% do grupo. O alvo foi a casa de Kerexu, onde vivem seus dois filhos Karaí, 9 anos, e Rayana, 14 anos. Também não foram poucos os telefonemas anônimos que a juraram de morte.

Itaty está situada no quilômetro 233 da BR-101, onde uma passarela conecta as 39 famílias, que sofrem o peso das manobras no Congresso para enfraquecer o direito a seu espaço. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito, pautada pela bancada ruralista e autorizada pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) no dia 28 de outubro, foi instalada um dia após a aprovação da PEC-215, que propõe uma manobra à Constituição para delegar justamente aos deputados a competência de julgar a demarcação de terras indígenas, quilombolas e reservas ambientais brasileiras.

O foco da CPI é investigar as ações da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra), algo visto com enorme preocupação por colocar em risco uma legislação que reconhece o direito indígena, que avançou com muita dificuldade.

E os Guaranis, que por meio da dança, espantam os maus espíritos, sabem bem disso. Desde a fundação dos mitos, o espírito mais perverso entre eles se chama Anha, o demônio. Mas Anha perdeu seu posto recentemente para a PEC 215, também chamada pelos índios de “PEC da morte”.

Deputados catarinenses e o Governo do Estado questionam a permanência dos Guarani nas terras de 1988 hectares entre a ponte do rio Massiambu e a ponte do rio do Brito. Ignoram 23 anos de processos vencidos em todas as instâncias jurídicas e o reconhecimento do Ministério da Justiça, publicado em abril de 2008.

Durante 30 anos, pesquisadores da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a principal instituição científica do país, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade de Brasília (UNB) publicaram estudos históricos, fundiários, cartográficos, ambientais e antropológicos sobre o Morro dos Cavalos. Há 978 artigos científicos nas bibliotecas virtuais desses centros de ensino sobre a existência legal e legítima da região indígena e suas raízes ancestrais ali. Mas, bastou um único laudo, escrito por um antropólogo contratado pelos latifundiários, para exibir como trunfo em meio à CPI. Um laudo que sugere que não são índios de verdade, mas trazidos do Paraguai.

Na ponta mais fraca, quem segura a pressão é a indígena baixinha de pele amorenada, longos cabelos pretos e olhos sestrosos. Kerexu Ixapyry, 35 anos, foi nomeada a primeira cacica do Morro dos Cavalos em fevereiro de 2012. Sua fala é mansa e pausada e apesar da aparente calma, não dobra a espinha. Se quase 70.000 homens lideram suas tribos no Brasil, ela é uma das 12 cacicas, gênero feminino do cacique.

Kerexu é conhecida por exibir seu alto cocar de penas vermelhas, amarelas e azuis nos grandes encontros em Brasília, reunida entre lideranças masculinas de outras etnias, dispostos todos a sair da invisibilidade em que vivem. Se antes ela não passava despercebida entre os seus, atualmente é conhecida como a primeira vítima das brutalidades que serão desencadeadas caso a PEC 215 vigore.

Os homens que invadiram a aldeia faziam tortura psicológica entre os seus. “Me falaram que fomos trazidos do Paraguai, que a CPI vai tirar nossas terras. Eu nunca tinha visto eles. Se alguém falasse alguma coisa teria morte, eles tinham ódio. Fiquei quieto, só ouvi. Não duvido que numa noite qualquer alguém entre atirando e mate todo mundo”, disse Verá Ixapyry, 22 anos, irmão da cacique, que mora ao lado da casa que foi invadida. Kerexu resiste, mas também fraqueja. “Às vezes me sinto na beira de um abismo, onde me propõem: pula ou te empurramos”, diz.

Na aldeia, ouve-se o barulho dos caminhões mais do que dos pássaros. A terra Guarani foi cortada ao meio pelos militares durante a construção da BR-101, a maior rodovia brasileira, que liga o Rio Grande do Sul ao Rio Grande do Norte em 4.542 km de extensão. Desde então, a estrada é vista como progresso. E os índios que vivem às suas margens têm a pecha de representarem o atraso.

Dos 21 deputados que votaram a favor da PEC 215, dois são catarinenses. Valdir Colatto (PMDB), uma das principais lideranças pela revogação do Estatuto do Desarmamento, foi financiado pela indústria armamentista e recebeu 36,9% do dinheiro de sua campanha do agronegócio, de acordo com dados do Instituto da Justiça Federal.

Jovem indígena com bebê no colo às margens da BR-101
Jovem indígena com bebê no colo às margens da BR-101 C.Weinman

Os índios Guarani da aldeia Itaty, no Morro dos Cavalos, vivem à margem da BR-101, desde que a estrada construída na época do Governo militar cortou suas terras ao meio.

Celso Maldaner recebeu 15%. Ele explicou o incentivo financeiro pela defesa que faz aos agricultores do Oeste catarinense. “Eles compraram terras na boa fé e agora tem que entregá-las aos índios, não é justo”, disse. Sobre os indígenas do Morro dos Cavalos, ele sugere que eles sejam paraguaios, trazidos por ONGs para faturar verbas da União.

Por fim, defende que a PEC seja benéfica aos indígenas. “Eles vão poder explorar a terra, os minérios, construir hidrelétricas ou arrendar o que têm. Afinal, precisam de dinheiro. Ninguém gosta de viver no miserê”. O Morro dos Cavalos faz parte da unidade de conservação Serra do Tabuleiro, onde há 2.292 nascentes e o mais diverso bioma do Estado.

Colatto não quis conversar com a reportagem. Em seu discurso, durante a votação, afirmou que os indígenas catarinenses eram favoráveis à PEC. Essa versão foi desmentida por meio de carta aberta divulgada pelas três etnias catarinenses, Guarani, Xokleng e Kaingang.

Apesar de viver com pouco, os Guarani não vestem a carapuça da pobreza que lhes empregam. “Nhanderú disse: ‘Vocês vão morar nessa terra e vão proteger ela’. Esse é o nosso destino. Não queremos terra para vender. Terra é de Nhanderú, não pode ser vendida. Ela está viva, todos os seres que a habitam são nossos parentes. Essa é nossa riqueza, não nos preocupamos com outros bens materiais”, disse Tupã Karaí, 60 anos, xamã da Itaty.

Tupã mora na casa mais alta do lado esquerdo da BR-101 com a mulher, as duas filhas, os genros, cinco netos e muitos cachorros. Sua pele morena é talhada pelo tempo, as mãos parecem cascas de árvores, ele só não sorri para tirar fotos, no mais, é pura gentileza.

Além das rezas, é responsável pela preservação das sementes crioulas do milho, repassadas de gerações em gerações há milênios. Tupã planta milho vermelho, preto, roxo, amarelo, com pintas. Entre agosto e setembro de cada ano colhe as sementes e as leva à opy (casa de reza) para serem consagradas por Nhanderú.

Celebra-se então o Ara Pyau, ano novo Guarani, novo ciclo de renovação da Mãe Terra. Os recém-nascidos são batizados, recebem seus nomes espirituais, soprados pelos ancestrais desencarnados através da fumaça do Petyngua (cachimbo sagrado). Esse rito chama-se Nhemongarai (consagração e batismo) e envolve as pessoas da comunidade e também de outras aldeias que trazem seus alimentos para somar ao plantio.

Aldeias próximas a Itaty plantam feijão preto, abóbora e erva mate. Paralelamente, ao Nhemongarai é praticado o Guatá, a caminhada que traz fertilidade a terra. O ritual permite que as aldeias se visitem e mantenham a sensação de unidade. Quando um índio chega com sementes é recebido com festa e decide se quer partir novamente para sua aldeia. Muitos ficam. Kerexu morou em 10 aldeias antes de liderar a Itaty.

Esse rito principal é o mais atacado. O deputado federal Alceu Moreira (PMDB – RS) crê que “esse ir e vir é só para aumentar terra para índio”. Nos seus depoimentos ele defende que os indígenas invadem fazendas e aos poucos se somam para tomá-las. A fraude seria orquestrada pelo CIMI, que segundo sua visão, estaria a serviço da inteligência norte-americana europeia para não permitir a expansão das fronteiras agrícolas do Brasil. Moreira foi um dos principais articuladores pela redução da proteção das matas com a flexibilização do Código Florestal em 2012. Votou a favor da PEC 215 e é presidente da CPI da Funai.

Ao seu lado está o coordenador da Frente Parlamentar de Agropecuária, deputado federal Luís Carlos Heinze (PP-RS), como vice-presidente da CPI. Ficou famoso em 2013 ao definir, durante uma reunião de uma Comissão, que “quilombolas, índios, gays e lésbicas… tudo que não presta estão aninhados [no gabinete de Gilberto Carvalho, então ministro da Secretaria Geral da Presidência, do primeiro mandato de Dilma] ”. Na mesma comissão, Moreira chamou a demarcação de índios e quilombolas de “vigarice” e disse que Carvalho estava no comando.

Fonte: El País